Confissão resumida
Só tenho vontade de
escrever num estado explosivo, na excitação ou na crispação, num estupor
transformado em frenesi, num clima de ajuste de contas em que as invectivas
substituem as bofetadas e os golpes. Em geral, começa assim: um ligeiro tremor
que se torna cada vez mais forte, como depois de um insulto que se recebeu sem
responder. Expressão equivale à réplica tardia ou agressão adiada. Escrevo para
não passar ao ato, para evitar uma crise. A expressão é alívio, desforra
indireta daquele que não consegue digerir uma vergonha e que se revolta em palavras contra os seus semelhantes e contra si
mesmo. A indignação é menos um gesto moral que literário, é mesmo a mola da
inspiração. E a sabedoria? É justamente o oposto. O sábio em nós arruína todos
os nossos élans, é o
sabotador que nos enfraquece e nos paralisa, que espreita em nós o louco para
dominá-lo e comprometê-lo, para desonrá-lo. A inspiração? Um desequilíbrio
súbito, volúpia inominável de se afirmar ou de se destruir. Não escrevi uma
única linha na minha temperatura normal. E, no entanto, durante muitos anos, me
julguei o único indivíduo livre de taras. Esse orgulho me foi benéfico: me
permitiu escrever. Parei de praticamente de produzir quando, apaziguado o meu
delírio, me tornei vítima de uma modéstia perniciosa e funesta para esta
exaltação de que emanam as intuições e as verdades. Só consigo produzir quando,
tendo desaparecido subitamente o sentido do ridículo, me considero o começo e o
fim.
Escrever é uma
provocação, uma visão felizmente falsa da realidade, que nos coloca acima do que existe e do que nos parece
existir. Competir com Deus, ultrapassá-lo mesmo apenas pela força da linguagem,
esta é a proeza do escritor, espécime ambíguo, dilacerado e enfatuado que,
livre da sua condição natural, se entregou a uma vertigem magnífica, sempre
desconcertante, algumas vezes odiosa. Nada mais miserável do que a palavra e,
no entanto, é através dela que atingimos sensações de felicidade, uma dilatação
última em que estamos completamente sós, sem o menor sentimento de opressão. O
supremo alcançado pelo vocábulo, pelo próprio símbolo da fragilidade. Pode-se
alcançá-lo também, curiosamente, através da ironia, com a condição de que esta,
levando ao extremo sua obra de demolição, cause arrepios de um deus às avessas.
As palavras como agentes de um êxtase invertido… Tudo o que é realmente intenso
participa do paraíso e do inferno, com a diferença de que o primeiro só podemos
entrevê-lo, enquanto o segundo temos a sorte de percebê-lo e, mais ainda, de senti-lo. Existe uma vantagem
ainda mais notável de que o escritor tem o monopólio: a de se livrar de seus perigos. Sem a
faculdade de encher as páginas me pergunto o que eu viria a ser. Escrever é
desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos. O escritor é um
desequilibrado que utiliza essas ficções que são as palavras para se curar.
Quantas angústia, quantas crises sinistras venci graças aa esses remédios
insubstanciais.
Escrever é um vício de
que podemos cansar-nos. Na verdade, escrevo cada vez menos e acabarei sem
dúvida não escrevendo mais, por já não achar a menor graça neste combate com os
outros e consigo mesmo.
Quando nos dedicamos a
um assunto, qualquer que seja, experimentamos um sentimento de plenitude
acompanhado de uma ponta de arrogância. Fenômeno mais estranho ainda: essa
sensação de superioridade quando evocamos um personagem que admiramos. No meio
de uma frase, com que facilidade nos consideramos o centro do mundo! Escrever e
venerar não andam juntos: quer se queira ou não, falar de Deus é olhá-lo do alto. A escrita é a
desforra da criatura e sua resposta a uma Criação sabotada.
[Cioran, E. M. (1915-1995) - Exercícios de Admiração
- Editora Rocco- Rio de Janeiro - 2011 - páginas 151-153]
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