sábado, 2 de abril de 2016

Marcelo Gleiser - Texto da debate

Segue na íntegra o texto do Marcelo Gleiser para discussão no próximo encontro de Filosofia e Religião.
São textos que versam sobre o tema proposto e há também uma entrevista do cientista.

Confiram:





Ateísmo radical
A ciência não deve se propor a tirar Deus das pessoas

Não é surpresa para ninguém que existem tensões entre ciência e religião. Santo Agostinho, o primeiro grande teólogo do cristianismo, afirmava que o pensamento aplicado à natureza leva ao pecado e à perdição; que, para obter a redenção, o importante é dedicar-se à adoração do eterno.

Mas a verdade é que a relação entre ciência e religião é bem mais complexa do que essa divisão superficial entre dois campos, o da razão e o do espírito. Infelizmente, volta e meia aparecem depoimentos que exacerbam exatamente essa polarização destrutiva. É o caso de três livros recentes: "O Fim da Fé" ("The End of Faith"), de Sam Harris; "Quebrando o Feitiço" ("Breaking the Spell"), de Daniel Dennett; e "A Delusão Divina" ("The God Delusion"), de Richard Dawkins. É sobre o livro de Dawkins, o mais virulento de todos os três, que escrevo hoje.

Primeiro, vamos às apresentações. Richard Dawkins é um biólogo especializado na teoria da evolução, professor em Oxford, Inglaterra, e um dos divulgadores de ciência mais famosos do mundo, com best-sellers como "O Gene Egoísta" e "O Relojoeiro Cego". Dawkins é um ateu declarado. Até aí tudo bem; muitos cientistas o são. Para muitos, mas não todos, é importante frisar isso: a conciliação entre uma descrição científica do mundo -baseada na obtenção de informação empírica da natureza por meio de experimentos e observações quantitativas- e a aceitação de uma realidade sobrenatural, inescrutável à razão humana, é impossível.

Já para alguns, o estudo da ciência serve para comprovar a beleza da criação. Imagino que Dawkins considere esses cientistas religiosos no mínimo incompetentes. Para ele, a ciência é um clube fechado, onde só entram aqueles que seguem os preceitos do seu ateísmo, tão radical e intolerante quanto qualquer extremismo religioso. Dawkins prega a intolerância completa no que diz respeito à fé, exatamente a mesma intolerância a que se opõe.

Vejamos um de seus argumentos. Se a complexidade do mundo foi criada por uma divindade, esta deve ser necessariamente mais complexa do que tudo o que criou. Porém, segundo a teoria da evolução, isso é impossível: a complexidade é produto da evolução. A divindade criadora deveria ter sido a última e não a primeira a surgir.

A quem Dawkins dirige um argumento desses? Certamente não aos religiosos. Qualquer pessoa que conheça um mínimo de teologia sabe muito bem que a idéia fundamental das religiões é que o divino não segue as regras causais que regem o mundo material. Deuses não evoluem; são absolutos, existem fora do tempo. Ele afirma que seu alvo são os "indecisos", que não acreditam em causas sobrenaturais mas não se declaram ateus. Será esse o modo de resolver o embate entre ciência e religião?

Na minha humilde opinião, absolutamente não. A atitude belicosa e intolerante do cientista britânico só causa mais intolerância e confusão. Seu grande erro é negar a necessidade que a maioria absoluta das pessoas tem de associar uma dimensão espiritual às suas vidas.

Um erro meio parecido com o do materialismo dialético dos comunistas, em que tudo é atribuído a causas materiais. Tirar Deus das pessoas e colocar um líder fascista no seu lugar não dá certo. A ciência não deve se propor a tirar Deus das pessoas. Se é essa a sua guerra, então ela já perdeu.

O que a ciência pode fazer é proporcionar outra forma de espiritualidade, ligada ao mundo natural e não ao sobrenatural, à cativante magia da descoberta. É esse naturalismo, essa entrega à natureza e aos seus mistérios, que dá à ciência a dimensão espiritual que a torna humana.

Marcelo Gleiser


Revista Epoca
E no princípio era o que mesmo?

Em tempos de internet e clonagem, cresce a força dos movimentos criacionistas. Pesquisa exclusiva do Ibope mostra que um terço dos brasileiros renega Darwin e acha que o homem foi criado segundo o Gênesis. Mais: 89% defendem o criacionismo nas escolas (ELIANE BRUM)

É fácil cair na tentação do deboche. Afinal, no terceiro milênio, sustentar que tudo a nossa volta foi feito - literalmente - em seis dias, inclusive o homem criado do barro e a mulher de uma costela, poderia soar como piada na era da internet e da clonagem. Mas, se o espanto é o sopro da razão, será sinal de inteligência levar o criacionismo a sério. Uma pesquisa nacional do Ibope feita exclusivamente para ÉPOCA mostrou que quase um terço dos brasileiros acredita - 145 anos depois da Teoria da Evolução de Darwin - que o homem foi criado por Deus nos últimos 10 mil anos e já na forma atual. Mais da metade, 54%, acredita que o homem se desenvolveu ao longo de milhões de anos, mas nada foi aleatório: Deus planejou e dirigiu o processo. O mais curioso, porém, é que 89% acham que o criacionismo deve ser ensinado nas escolas. Pior: 75% acreditam que se deve substituir a Teoria da Evolução no currículo.

Se isso ''é fruto da ignorância'', como costuma dizer o biólogo britânico Richard Dawkins, considerado o maior divulgador vivo da Ciência, mais uma boa razão para prestar atenção na onda criacionista. ''Os resultados da pesquisa não me espantam, apenas mostram a precariedade do ensino de Ciências no Brasil. Demonstram que temos muito trabalho pela frente'', diz o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ennio Candotti. ''Embora o conhecimento científico esteja nas atividades do dia-a-dia, para quem não o compreende, algo corriqueiro como um telefonema pode tornar-se um mistério atribuído ao sobrenatural. Se fizessem uma enquete como essa sobre Regra de Três, mais de 70% não saberiam aplicá-la.''

Os resultados mostram que, quanto menores a renda e a educação, maior a adesão ao criacionismo. Mesmo assim, o ensino da Criação é defendido pela maioria dos entrevistados das classes A e B e pelos que têm nível superior - embora num porcentual menos elevado. ''Isso mostra a persistência da mentalidade religiosa em todos os estratos sociais. Nem sempre o saber científico consegue mudar a cultura'', diz o sociólogo Maurício Martins. ''Se vivemos num momento histórico em que o ambiente é propício para adesões religiosas radicais, essa tendência vai se manifestar também nas expectativas sobre que educação consideram mais adequada.''

Embora tenha surgido na Europa, como oposição à Teoria da Evolução, ao longo do século XX o criacionismo estabeleceu-se mesmo nos Estados Unidos. Para a religião católica e várias correntes protestantes, a narrativa do Gênesis é apenas simbólica e deve ser entendida como tal. Mas para as correntes evangélicas que pregam o fundamentalismo - ou seja, tomar o que está escrito na Bíblia ao pé da letra, não admitindo que nada seja metáfora ou símbolo - a Teoria da Evolução é inconcebível. Como essas correntes são mais difundidas no sul dos EUA, o criacionismo tornou-se tão americano quanto a Coca-Cola e a torta de maçã. No Brasil, a principal mensageira da idéia foi a governadora do Rio de Janeiro, Rosinha Garotinho. Para agradar às fileiras cada vez mais numerosas de eleitores evangélicos, ela instituiu em 2004 o ensino do criacionismo na rede pública. E arrematou: ''Não acredito na evolução das espécies. Tudo isso é teoria''.

O resultado mais nefasto desse embate entre Criação e Evolução não é o surgimento de uma nova geração de criacionistas, mas as levas de estudantes que saem da escola sem entender a Teoria de Darwin - tragédia com impacto social e econômico, já que ela é pressuposto para a realização de pesquisas que vão da busca de petróleo à descoberta de vacinas. ''Ficamos todos chocados quando o Rio decidiu que o criacionismo era interessante, mas isso é conseqüência da inatividade política e social dos cientistas. É um defeito do sistema educacional'', critica o astrofísico brasileiro Marcelo Gleiser. ''Aqui, nos Estados Unidos, e aí, no Brasil, os professores não ensinam as crianças direito e quando elas crescem começam a acreditar nessas coisas. Está na hora de a comunidade científica acordar, porque estamos perdendo essa guerra.''

Para entender o cisma entre Criação e Evolução, basta imaginar um cenário familiar aos brasileiros. Os criacionistas afirmam que o homem, o mosquito da malária e o protozoário causador da doença responsável por 2,7 milhões de mortes anuais no mundo são criaturas do plano da criação de Deus. Para os evolucionistas, os três seres vivos são meros coadjuvantes de um processo evolutivo lento e complexo, baseado na seleção natural e no poder de adaptação ao meio. Partindo de um ancestral comum, os três seguiram caminhos evolutivos próprios - nem melhores nem piores, no sentido moral com que o termo costuma ser empregado, e sem propósito predeterminado.

Para a ala mais fundamentalista dos criacionistas, o maremoto que matou milhares na Ásia, na semana passada, não seria causado por movimentos das placas terrestres (pois não acreditam que eles aconteçam), mas um flagelo enviado por Deus. Assim como os fósseis de dinossauros nada mais seriam que animais mortos por afogamento, que ficaram fora da Arca de Noé durante o Dilúvio. Nos Estados Unidos, o Washington Post observou que, infiltrado entre os livros científicos à venda na livraria do Parque Nacional do Grand Canyon, estava Grand Canyon: Uma Visão Diferente. Nele, os visitantes são informados de que a garganta foi criada não por erosão durante milhões de anos, mas em poucos dias, como resultado do dilúvio que obrigou Noé a construir sua Arca.

Em seu tempo, Darwin foi mal recebido por muitos religiosos em função da mudança de perspectiva que A Origem das Espécies impôs: o homem deixava de ser o dono do mundo, criado à imagem e semelhança de Deus, e passava a ser apenas um macaco melhorado, produzido por um acidente biológico. A repercussão do livro ecoou em todo o mundo, da filosofia à poesia (na ópera Otelo, de Verdi, o vilão Iago é mau porque é evolucionista). Opadre e filósofo francês Teilhard de Chardin dedicou sua vida a unificar a Teoria da Evolução com a doutrina católica. Mas a prova de quanto a mudança de perspectiva ainda incomoda está no site da Associação Brasileira de Pesquisa da Criação, organizada em 1979, nas palavras do fundador, Christiano da Silva Neto: ''O ministério criacionista é a estratégia de Deus contra um dos ataques mais agressivos desferidos contra a fé cristã: a Teoria da Evolução''.

Foi só no século XX que o criacionismo se organizou politicamente, preocupado com a massificação da educação pública - e com ela o ensino da Evolução. Em 1890, apenas 200 mil crianças freqüentavam as escolas públicas nos EUA. Em 1920, o número havia saltado para 2 milhões. Foi isso que fez soar o alarme. Todo o século XX foi pontuado por ataques dos criacionistas à Teoria da Evolução, com conselhos escolares de Estados americanos como Arkansas e Louisiana tentando - e às vezes conseguindo - ora incluir o criacionismo no currículo, ora proibir o ensino da Evolução. O ano de 2004 termina com mais uma polêmica, desta vez motivada pela cidade de Dover, na Pensilvânia, que incluiu o criacionismo na rede escolar, numa batalha judicial que se expandiu pelo país.

Desde os anos 60, os criacionistas mudaram de tática: em vez de continuar questionando a moralidade do darwinismo, lançaram o criacionismo como um relato científico alternativo e formaram uma geração de defensores. Cientistas com ph.D. publicaram livros que logo se tornaram best-sellers nas Américas. Um dos pop stars dessa linhagem é o bioquímico Michael Behe, professor da Universidade de Lehigh, na Pensilvânia, e autor de A Caixa Preta de Darwin. Em entrevista a ÉPOCA, Behe definiu-se, na esfera religiosa, como um ''católico romano praticante que tem a Bíblia em alta consideração''. Ele é representante do ''Design Inteligente'', movimento que não gosta de ser chamado de criacionista e que usa argumentos sofisticados e supostamente baseados na Ciência para atacar a teoria darwinista. Estruturas como o olho humano, por exemplo, não poderiam ser resultado de mutações aleatórias filtradas pela seleção natural. A célula, com sua complexidade, seria a prova de uma intencionalidade inteligente.

É o que batizaram de princípio da complexidade irredutível: segundo eles, seria preciso um salto enorme para que os elementos inorgânicos da Terra primordial se transformassem em moléculas orgânicas e células completas (os cientistas não concordam com essa visão e alegam que o salto na realidade é bastante simples). Os defensores do DI não falam em Deus, mas induzem à conclusão de que o design precisa de um planejador. ''O conceito do Design Inteligente parece uma resposta óbvia ao problema da complexidade bioquímica, embora a Ciência continue ignorando o conceito, o que me parece ser uma espécie de repúdio filosófico'', disse Behe a ÉPOCA. A Ciência, na verdade, responde com formulações bastante complexas, como a Lógica do Acaso e a Necessidade, a Teoria do Caos e a Teoria dos Jogos. Mas, como a maioria dos leigos não tem acesso a elas, o argumento do DI parece fazer sentido.

Tudo o que os criacionistas querem, hoje, seja no Brasil, seja nos Estados Unidos, é divorciar sua crença da Religião. Nesse sentido, Rosinha Garotinho prestou um desserviço à causa ao alojar o criacionismo na disciplina de Ensino Religioso. ''Criacionismo não é Religião. É uma estrutura conceitual, como o evolucionismo. Ambos são filosofias das origens'', afirma o engenheiro Ruy Vieira, presidente da Sociedade Criacionista Brasileira, a mais antiga do Brasil, fundada em 1972, hoje com mil sócios. Eles lutam para que evolucionismo e criacionismo fiquem no mesmo patamar, como teorias do mesmo campo do conhecimento. Sem poder enfrentar a Ciência num mundo em que os atos mais corriqueiros, de aquecer a comida a pegar o ônibus para ir ao trabalho, não seriam possíveis sem ela, a estratégia criacionista é fazer o inverso: desacreditar a Evolução como teoria científica. Assim, poderiam afirmar que o evolucionismo é apenas mais uma visão de mundo - e não uma teoria testada pelo método empírico, em pé há 145 anos, que fundou a Biologia moderna e até hoje é pressuposto de pesquisas de ponta no mundo inteiro.

''O evolucionismo está com os dias contados'', diz Vieira, que curiosamente foi diretor-científico da Fapesp de 1979 a 1985, fundador da Academia de Ciências de São Paulo e até o governo passado representante do MEC na Agência Espacial Brasileira. ''O evolucionismo não é Ciência, mas tem muitas características da Religião. Tem seus próprios dogmas, seu livro sagrado, A Origem das Espécies, seus sacerdotes vestidos de avental branco e até aquele traço das religiões que pretendem ser únicas e perseguem aqueles que não aceitam seu ponto de vista'', ironiza. Esses argumentos têm relativo sucesso quando apresentados aos leigos, porque atribuem à Teoria da Evolução características que ela não possui.

O livro de Darwin foi provavelmente o escrito científico recebido com maior hostilidade na História moderna - tanto que, quando alguém se refere à Evolução, costuma acrescentar o prenome ''teoria'', coisa que não se faz por exemplo com a gravidade. Ele permanece simplesmente porque de lá para cá vem sendo comprovado quase diariamente. As correções de detalhes feitas nesse período são normais e esperadas em toda a teoria científica. Para a Ciência, críticas não são um problema, mas parte inseparável do método. As incertezas, que para os criacionistas não passam de fraquezas, para os cientistas são parte natural do processo. Infalibilidade e verdades absolutas não são Ciência, mas pseudociência.

No tempo de Darwin, ainda não haviam ocorrido os enormes avanços nas áreas de Biologia Molecular, Genética e Bioquímica. Os cientistas que hoje incorporam os novos conhecimentos ao arcabouço teórico evolucionista são chamados de neodarwinistas. Da mesma forma, a Lei da Gravidade de Isaac Newton não foi abolida quando Albert Einstein a ampliou conceitualmente. ''Se a história da Ciência nos mostra alguma coisa é que não vamos a parte alguma chamando nossa ignorância de Deus'', pontuou o geneticista Jerry Coyne, da Universidade de Chicago.

Na luta para se imporem como corrente alternativa ao evolucionismo, os criacionistas usam o sofisma da perseguição. É uma estratégia eficiente nos Estados Unidos, porque ecoa numa cultura predominantemente evangélica, que formou sua identidade com a história dos puritanos que fugiram da Europa por causa dos conflitos com os católicos. ''Os evolucionistas assumiram o controle de todas as instituições acadêmicas relacionadas à educação, não permitindo que os criacionistas se manifestem. Também dominam as revistas científicas, não permitindo que os criacionistas publiquem seus trabalhos, e toda a imprensa secular os segue'', diz Silva Neto, da ABPC. Ele refere-se ao evolucionismo como ''teoria maligna'', aos evolucionistas como ''inimigos'' e acredita que o criacionismo é um ''ministério a serviço da vontade de Deus''.

No Núcleo Brasileiro do Design Inteligente, formado em 1998 após leitura do best-seller de Michael Behe, apenas o coordenador, o tradutor científico Enézio de Almeida Filho, se identifica. Explicou a ÉPOCA: ''Como é uma revolução epistêmica, revelar-lhe o número de nossos quadros é dar uma idéia aos que praticam 'ciência normal' da dimensão do grupo herege. Preferimos deixá-los em suspense, mas há ph.Ds entre nós. Protegemos a todo custo as identidades e os locais de trabalho dos acadêmicos porque quem ousar afirmar que Darwin acertou no varejo mas errou no atacado corre o risco de sofrer uma 'inquisição sem fogueira'''.

Outro argumento da retórica criacionista é o da falsa democracia. Proclamando-se homens de mente aberta, os criacionistas dizem que não querem retirar o darwinismo das escolas, mas apresentar aos alunos outras teorias para que possam decidir por si mesmos - esquecendo que o evolucionismo é uma teoria científica, e o criacionismo não resiste a uma leitura mais profunda. Neste discurso, os darwinistas são acusados de ''autoritários'' porque desejariam que a Evolução permanecesse como ''verdade única''. Encampar a idéia de que o criacionismo deveria ser ensinado como alternativa ao evolucionismo, ao contrário, seria a decisão mais democrática. ''O darwinismo deve ser ensinado, assim como as críticas a ele. O Design Inteligente e outras teorias alternativas deveriam ser ensinadas, assim como as críticas a elas'', disse Behe a ÉPOCA. ''Os estudantes achariam excitante ouvir um amplo espectro de idéias.''

Esse argumento capcioso é o mesmo utilizado pelos revisionistas do Holocausto judeu, que, apesar das fotografias, dos relatos dos sobreviventes, dos documentos, das evidências materiais, da confissão dos algozes e do reconhecimento do Estado alemão, continuam afirmando que o Holocausto foi uma ''armação''. Dizendo-se ''perseguidos'', eles também querem que sua teoria fraudulenta seja ensinada junto com a ''outra'', a de que 6 milhões de judeus foram assassinados em campos de concentração.

Os criacionistas, aliás, diriam que o Holocausto é mais uma prova do efeito nefasto do evolucionismo, porque, ao massacrar os judeus, os nazistas teriam sido respaldados pela seleção natural, em que vencem os mais fortes. A manipulação política e as distorções da Teoria da Evolução sempre serviram de combustível para alimentar a fogueira em que os partidários da Criação pretendem queimar as idéias de Darwin. Morto há mais de 100 anos, o naturalista jamais compactuou com qualquer uso político da sua teoria e, com certeza, se revolveria no túmulo da Abadia de de Westminster, onde repousa ao lado de Newton, diante dessa sugestão.

O embate entre criacionismo e evolucionismo é travado no campo da política. O que está em discussão, hoje e sempre, é em que medida a Religião pode interferir no Estado - uma discussão aparentemente ultrapassada, mas que volta à agenda internacional com a reeleição de George W. Bush. Para ter uma idéia de quanto a situação é dramática, no quesito evolução Bush está à direita do papa João Paulo II, que, em 1996, capitulou e pediu desculpas formais a Darwin e sua família, proclamando que ''a Teoria da Evolução é mais que apenas uma hipótese'' e ''a evolução é compatível com a fé cristã''. Como o papa não é de ferro, arrematou: ''Se o corpo humano tem sua origem na vida que existia antes, a alma espiritual é criada imediatamente por Deus''.

Nos Estados Unidos, uma pesquisa da rede CBS mostrou que 71% dos eleitores de George W. Bush são favoráveis ao ensino conjunto do evolucionismo e criacionismo - e 45% acham que só o criacionismo deve constar do currículo escolar. ''O Partido Democrata tem sido ocupado pelos que escarnecem da cristandade, abraçados a homossexuais, defensores do aborto, elitistas de Hollywood. É nele que se encontram aqueles que rejeitam a fé sobre a qual os EUA foram fundados'', disse a ÉPOCA o bioquímico Duane Gish, um dos papas do criacionismo, que já veio cinco vezes ao Brasil, a convite da ABPC. ''Aqueles que têm sua fé e valores morais encontram abrigo no Partido Republicano. O presidente Bush tem expressado abertamente sua sincera fé cristã. Há pouca dúvida de que apóie a Criação.''

Nessa guerra travada na era mais tecnológica da aventura humana sobre o terceiro planeta em órbita ao redor do Sol, os criacionistas levam vantagem porque acreditar que Deus criou o homem e o mundo como conta a Bíblia é um ato de fé. Mas são necessários anos de estudo, acesso à educação de qualidade e professores competentes para construir conhecimento e compreender a beleza da Teoria de Darwin. Como dizia o poeta português Fernando Pessoa, ''o Binômio de Newton é tão belo quanto a Vênus de Milo. O que há é pouca gente para dar por isso''.

''Estamos perdendo a guerra''
O astrofísico Marcelo Gleiser diz que a divulgação científica é a melhor arma para combater as trevas do criacionismo

Professor do Darthmouth College, uma das mais conceituadas universidades americanas, o brasileiro Marcelo Gleiser é hoje um dos maiores divulgadores científicos. Em 2005, seu best-seller A Dança do Universo estará nos palcos do país como musical. Ele também escreve um roteiro de cinema em parceria com Cacá Diegues. De New Hampshire, ele falou a ÉPOCA por telefone.

ÉPOCA - Os criacionistas mais sofisticados, como os do Design Inteligente, usam o discurso científico para combater a Teoria da Evolução. Qual é o risco?
Marcelo Gleiser - A Ciência não pretende ter todas as respostas. O cientista que disser que nós entendemos tudo está mentindo para o povo da mesma maneira que um criacionista estaria. Por outro lado, as respostas que encontramos são validadas. Temos uma hipótese e, se ela sobreviver aos testes, é aceita. Da maneira como é construída, a Ciência é imune às críticas, porque as críticas são desejáveis, fazem parte do método científico. O que o criacionismo faz é usar o fato de a Ciência não ter todas as respostas para insinuar que isso é a prova de que existe uma força divina por trás de tudo. É verdade que temos questões em aberto, ainda não sabemos exatamente como a vida surgiu na Terra nem como as pessoas se tornaram inteligentes, mas é um absurdo atribuir nossa ignorância ao sobrenatural. É anticiência. Para um cientista, atribuir o que não sabemos a Deus é jogar a toalha. É desistir de perguntar.

ÉPOCA - Você acha que o recrudescimento do criacionismo e do extremismo religioso ameaça a separação Igreja-Estado?
Gleiser - Acho que é exatamente esse trabalho que o Bush está tentando fazer nos Estados Unidos, que se transformaram numa teocracia. Bush foi eleito pela direita religiosa, hoje quem está no poder é Deus. Infelizmente parece que, no Rio, a senhora Garotinho, com sua grande iluminação intelectual, está tentando a mesma coisa.

ÉPOCA - Você diz que a Ciência emancipa, liberta as pessoas. Como?
Gleiser - Na Religião, o conhecimento vem através da fé. É uma forma de escravidão, porque se é inteiramente passivo. Aceita-se e ponto final. A Ciência ensina a pensar sobre o mundo e, por isso, você se transforma numa pessoa capaz de construir sua visão de mundo. Hoje, há tantas coisas importantes acontecendo na Ciência, como a engenharia genética e a clonagem, que, para ser um cidadão ativo no processo democrático, você tem de ter uma idéia do que está ocorrendo em Ciência. Senão vai ser politicamente manipulado, como está acontecendo nos EUA e no Brasil.

ÉPOCA - Neste cenário, a Ciência assume uma importância política maior?
Gleiser - Exatamente. É a única arma que a gente tem para combater as trevas. Se aceitarmos um obscurantismo religioso, vamos voltar à Idade Média. Não estou falando de deixar de brincar com TVs e computadores, mas da total escravidão intelectual do homem com relação à Religião.

ÉPOCA - Você acha que seus colegas têm consciência disso?
Gleiser - Deveriam ter. Está na hora de a comunidade científica acordar, perceber que tem um papel público fundamental. Não adianta ser cientista apenas no laboratório ou escrevendo artigos para os colegas. A Ciência tem um papel social e político extremamente importante, especialmente agora. Do contrário, vamos perder essa guerra. Todo o mundo fica chocado quando o Rio decide que o criacionismo é interessante, mas essa é uma conseqüência da inatividade política e social dos cientistas, é um defeito do sistema educacional.

ÉPOCA - É possível conciliar espiritualidade e Ciência?

Gleiser - Claro. O papel da Ciência não é roubar Deus, mas aliviar o sofrimento material do homem. Se as pessoas querem usar a Religião para aliviar o sofrimento espiritual, tudo bem. Há lugar para as duas. O perigo é quando a Religião quer tomar o lugar da Ciência e passa a dizer que a Bíblia, interpretada literalmente, explica como o mundo foi feito

Nenhum comentário:

Postar um comentário